Há momentos raros na história em que a sociedade civil desperta de sua apatia e se mobiliza em torno de causas verdadeiramente civilizatórias. Esses momentos são preciosos — e, quando ocorrem, revelam o potencial transformador da consciência coletiva.
Sempre me causou temor o movimento das massas. A “besta das ruas”, como já foi chamada, costuma se mover mais facilmente pelo ódio do que pela razão. Linchamentos, discursos de barbárie e mobilizações motivadas pelo ressentimento sempre foram mais eficazes para agitar a malta do que causas nobres. Mas há exceções. E é nelas que reside a esperança.
Foi assim nas marchas contra a guerra do Vietnã, no final dos anos 1970. No Brasil, nas manifestações pelas Diretas-Já. E hoje, vemos a mobilização mundial contra o genocídio em Gaza reunir a parcela mais consciente da opinião pública ocidental. Não é apenas contra o genocídio, mas contra todas as bestas que infestaram o mundo com sua selvageria e desumanidade.
No Brasil recente, os abusos do bolsonarismo provocavam reações nos setores bem informados, mas eram recebidos com silêncio pela maioria da população. Muitos se indignavam, mas calavam-se para evitar confrontar a agressividade militante dos bolsonaristas. Esse silêncio, por sua vez, alimentava ainda mais a ousadia da ultradireita e das organizações criminosas acampadas na Câmara Federal.
Um bom laboratório para observar essa dinâmica são os grupos de WhatsApp. Em um grupo familiar que acompanho, inicialmente apenas os bolsonaristas se manifestavam. Após alguns conflitos, decidiu-se evitar discussões políticas. Então, uma pessoa criou um novo grupo, com viés progressista. Aos poucos, a maioria migrou para esse novo espaço — inclusive senhoras sem formação política, mas que se sentiam mais à vontade para expressar suas opiniões.
O fato novo das passeatas do último domingo foi a decisão da “coluna do meio” de sair do acomodamento. Esse despertar ocorreu em meio a uma série de manifestações civilizatórias e de afirmação das instituições:
- A ofensiva da Polícia Federal contra esquemas de lavagem de dinheiro;
- A postura firme do Ministro Flávio Dino contra as emendas Pix;
- O encerramento do julgamento da trama golpista de 8 de janeiro;
- O desmonte da quadrilha que atuava no ICMS de São Paulo.
Ao mesmo tempo, o bolsonarismo seguia estimulando reações:
- As ameaças de Donald Trump;
- As declarações absurdas de Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo.
- O ápice foi a sequência de discursos de Lula em Nova York — na ONU e em fóruns paralelos — rompendo a cortina de silêncio imposta pela grande mídia. A atuação proativa da Secretaria de Comunicação, especialmente nas redes sociais, foi decisiva para amplificar essa mensagem.
O resultado foi um efeito cascata extraordinário. Aqueles que antes se calavam, supondo serem minoria, agora se veem abrigados por uma ampla rede de solidariedade.
No dia seguinte ao discurso histórico na ONU, Lula concedeu uma entrevista. Indagado sobre o avanço da ultradireita, formulou um diagnóstico que soou como autocrítica. O ponto central é que, no poder, a esquerda tende a focar na gestão e na resposta às demandas sociais, muitas vezes negligenciando a construção de narrativas capazes de mobilizar corações e mentes — espaço que a ultradireita ocupa com eficácia.
O desafio agora é manter viva essa chama de mobilização civilizatória. Porque quando a sociedade civil desperta, ela não apenas reage — ela transforma. E pode ter chegado o momento de discutir o realinhamento das instituições brasileiras, a recomposição da democracia e reorganização institucional.
Há a necessidade de uma ampla reforma do Estado brasileiro, conduzidas de dentro para fora, mobilizando os cidadãos empenhados em preparar o país para um novo futuro. O papel da Justiça, do Supremo, a subordinação das Forças Armadas ao poder civil, a revisão das leis anti-drogas, a criação de um novo direito do trabalho. Enfim, uma enorme lição de casa, só possível quando se vislumbra o renascer da cidadania.