O presidente da instituição Derechos Humanos Sin Fronteras, Juan Carlos Moraga. Foto: Carla Castanho
É hora de estabelecer um diálogo estruturado com a China, com os países latino-americanos compreendendo como o país chinês negocia e articulando suas próprias políticas de forma coordenada, sempre com uma visão estratégica de longo prazo. “Somente beneficiando o mundo é possível beneficiar o próprio país”.
A afirmação acima, acompanhada do provérbio confucionista, deram o tom da Segunda Mesa Redonda China–Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre Direitos Humanos, realizada em São Paulo no dia 25 de julho. Foram seis horas de debates, sotaques diversos e uma agenda em comum para construir caminhos de governança global sobre o tema.
“Desigualdade estrutural e pressão global tornam a integração uma necessidade estratégica. Não se trata apenas de comércio, mas de inovação, solidariedade e da construção de uma aliança entre os povos, especialmente diante das potências ocidentais”, disse Jones Cooper, professor da Universidade do Panamá, durante a palestra principal.
O GGN esteve presente a convite da organização do evento, realizado pela Sociedade Chinesa de Estudos de Direitos Humanos, Universidade Renmin da China e Universidade Estadual Paulista.
O encontro reforçou a ideia de um “futuro compartilhado”, em que cada nação tem voz própria. Entre as propostas destacadas estavam a criação de marcos regionais de regulação — ou seja, normas e regras comuns para orientar a cooperação entre os países da região em áreas como comércio, investimentos, tecnologia, meio ambiente e direitos humanos.
Também foram sugeridos o fomento a projetos binacionais e regionais, o fortalecimento de mecanismos permanentes de diálogo público, o desenvolvimento de cadeias de valor com maior conteúdo local, além da exigência de corresponsabilidade e sustentabilidade de todos os envolvidos em cada parceria.
Para o presidente do Parlamento Andino, Gustavo Adolfo Pacheco Villar, “Não competimos, nos complementamos. Nossa região é rica em recursos naturais e, nessa cooperação, buscamos igualdade, equidade e proteção dos direitos humanos”.
O clima também foi de resistência. As tarifas impostas pelo governo Trump a diversos países foram citadas como exemplo de pressões externas que corroem a soberania. “Quem grita mais não tem o direito de dizer o que é direitos humanos. Todos têm direito à palavra. Isso exige esforço, não é só teoria”, disse Mo Jihong, diretor do Instituto de Direito e Membro da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
Tecnologia e migração: uma nova forma de exclusão
Para exemplificar a urgência do debate sobre soberania digital e proteção de dados, o diretor da Associação Agenda Migrante El Salvador, César Oliverio Rios Vásquez, trouxe um alerta contundente sobre a vulnerabilidade da migração, que está sendo gerida por mecanismos digitais de controle.
“Dados, algoritmos e uma espécie de ‘vingança digital’ estão sendo usados para monitorar pessoas, especialmente nos Estados Unidos”, afirmou sobre o modelo fortalecido na nova administração de Donald Trump, e que envolve grandes corporações e acordos opacos, sem marcos jurídicos claros ou participação cidadã.
“Quem protege os dados das pessoas migrantes? Quem supervisiona o uso dessas informações? Como garantir que a tecnologia não seja usada para criminalizar a pobreza e a dignidade humana? A resposta não está no silêncio. Não podemos permitir que a tecnologia se torne uma nova forma de exclusão”, indagou Rios Vásquez.
Academia e a crítica à instrumentalização dos direitos humanos
O papel da academia e da sociedade civil na formulação de políticas de direitos humanos esteve no centro do debate. O vice-reitor da Unesp, César Martins, destacou a importância de seguir fortalecendo os observatórios de educação e os Institutos Confúcio como espaços estratégicos para aprofundar o diálogo entre nações.
Já o professor Davis Gruber Sansolo ressaltou o papel fundamental dos movimentos sociais na construção de agendas inclusivas, ao destacar que a participação popular é indispensável para conferir legitimidade às políticas de direitos humanos.
Ambos alertaram para a necessidade de respeitar as particularidades de cada país, destacando que os direitos humanos devem ser um instrumento para proteger os interesses nacionais, e não um pretexto para intervenções externas ou para sua instrumentalização política.
Nesse sentido, a presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos do Parlamento do Mercosul, Victoria Analia Donda Pérez, filha de desaparecidos e neta de membros da Praça de Maio, enfatizou a importância de criar observatórios que estimulem a imaginação política e novas abordagens para os direitos humanos, ao mesmo tempo em que relembrou os períodos sombrios das ditaduras latino-americanas nas décadas de 1970 e 1980, alertando para os riscos do uso indevido desses direitos para justificar abusos.
“O Plano Condor, as políticas em relação a Cuba e à Venezuela ou a justificativa de golpes e bloqueios evidenciam como o discurso dos direitos humanos pode funcionar como fachada de interesses alheios às populações afetadas”.
Ela lembrou que, no Oriente Médio, invasões como as do Iraque e da Líbia, justificadas sob o argumento de proteção à população civil, resultaram no colapso estatal e na desarticulação social. Ao mesmo tempo, destacou a importância dos tratados internacionais contra o feminicídio e outras formas de violência estrutural, mas criticou a “lógica extrativista” e, muitas vezes, “paternalista” presente na agenda internacional de direitos humanos.
Equidade e multilateralismo
Durante o encontro, representantes da região caribenha destacaram alguns valores da relação com a China. Natalie Eleanor James relembrou que a Jamaica foi o primeiro país da região a reconhecer, em 1972, a República Popular da China. “A Jamaica está comprometida em cumprir todas as nossas obrigações internacionais”, afirmou. Ela também citou as Olimpíadas como exemplo vivo de cooperação e amizade entre as nações.
Já Shaira Natasha Downs Morgan, membro da Assembleia Nacional da Nicarágua, trouxe ao debate a necessária voz das mulheres, jovens e povos indígenas nessa nova realidade. “Vivemos um momento baseado em direitos, paz e soberania. Temos um amigo que não exige submissão e que respeita o multilateralismo”.
Solidariedade internacional pela Palestina
Para além das críticas ao imperialismo norte-americano, também ganharam destaque as denúncias sobre as atrocidades cometidas pelo primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu em Gaza. A fala mais carregada de emoção veio do chileno Juan Carlos Moraga, presidente da organização Direitos Humanos sem Fronteiras, com um apelo pelo respeito à vida.
“Não podemos permanecer em silêncio diante das atrocidades cometidas por aqueles que se acham donos do planeta, em Gaza e na Cisjordânia. Precisamos de justiça, verdade e solidariedade entre os povos. Neste dia especial, lembrem-se da Palestina”.
Moraga criticou a parcialidade de instituições internacionais, muitas vezes financiadas pelos mesmos atores que violam direitos humanos, e o silêncio diante de organismos militares como a OTAN. Destacou ainda a postura da China, que rompeu o bloqueio aéreo em Gaza para levar alimentos à população faminta. “É tolo e grosseiro ocultar os avanços da China em direitos humanos e sua contribuição à paz mundial”.
A China sustenta uma concepção própria de direitos humanos, centrada no coletivo e na estabilidade social, em contraste com a ênfase ocidental nas liberdades individuais. Faltou, no entanto, aprofundar como esse modelo pode servir de referência para a América Latina, considerando que, apesar de ter erradicado a pobreza extrema, o país ainda concentra um número significativo de bilionários, o que revela contradições internas na sua trajetória de desenvolvimento, baseada atualmente no “socialismo de mercado”.
Depois das palestras principais, as discussões avançaram para temas centrais como a proteção dos direitos humanos na era da digitalização, governança global e a busca por justiça ambiental. O GGN publicará mais matérias sobre as sessões temáticas